sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Saudades de Casa

Existem horas que nós percebemos a quão nossa vida está perdendo o sentido. Alguns dias sentado numa trincheira (ou atrás de qualquer coisa que bloqueie uma bala), ouvindo tiros para todos os lados, olhando para a cara cansada dos mesmos companheiros que não têm mais o que falar. Nós simplesmente trocamos olhares e sabemos o que o outro está sentindo. O olhar desolado e um demorado suspiro transmitem perfeitamente a sensação de exaustão. E o pior é que a cada dia que passa acordamos com o temor de perder mais um irmão em outro dia como aquele. Mas, mesmo com esse medo diário, hoje tínhamos a expectativa de alcançar um hotel, próximo ao cemitério de Porto Príncipe.

Foi-nos informado que lá teríamos proteção e suprimentos, pelo menos pelos próximos três dias. O primeiro passo era atravessar o cemitério e entrar na Rua Alerte. O problema é que como é uma rua comprida, talvez nosso grupo tenha que se separar ou fazer desvio de rota. Assim, entraríamos na Titus e depois na Cadet Jeremie, a rua do Hotel Oloffsson. Depois de passarmos pela Chreron e alcançarmos a Dr. Dehoux, avistamos os muros do cemitério. Contornarmos o jardim dos mortos para então chegar a Alerte, que liga a Boulevard Henry Turman até uma paralela a Titus, nas proximidades da Rua Cadet Jeremie.

O dia amanhecia quando iniciamos a operação, trocando de posições pelas calçadas da rua e passando por lugares cobertos, tentando evitar que fôssemos vistos. Nos dividimos em três de cada lado da rua. Era um pouco arriscado, mas poderíamos pegar a segunda curva a direita para entrarmos na Rua Titus, menor e aparentemente mais segura que a atual. Assim que terminamos de percorrer a extensão do cemitério e passamos pela primeira direita, ouvimos o barulho de um disparo. Ao olhar pro lado, percebi que o Gavião (o potiguar gente boa) havia sido alvejado. Estava caído próximo à rua, com sua cabeça envolta em uma poça de sangue. Temendo outros disparos, nossos companheiros se esconderam imediatamente.

Senti o peito doendo um pouco. Não só Gavião havia acabado de morrer, como também Luiz César Gomes, o homem que estava por baixo daquela farda, com mulher e filha. Resolvemos esperar alguns instantes, tentando fazer com o que o inimigo acreditasse que nosso companheiro estava sozinho. Sentamos um pouco e começamos uma oração baixa pela alma de nosso amigo. Chorei um pouco. Ainda havia mais um trecho de pelo menos cento e cinqüenta metros da Rua Alerte até podermos virar a direita e chegar ao nosso destino parcial.

Precisávamos de pelo menos uns dez minutos, para cansar o atirador. Lembrei-me de quando mais novo ia pra fazenda do meu pai, no interior do Rio de Janeiro. Era tão fácil ser feliz com coisas tão simples, como andar a cavalo, tomar leite direto da vaca ou brincar de guerra de mamonas. Comer um pão quente com bastante queijo, presunto e manteiga, ainda acompanhado de um pote de doce de leite de sobremesa. Nada como a simplicidade mineira disfarçada no estado do Rio de Janeiro. Talvez lembrando também da infância, estavam ao meu lado o Calango (um baiano nervoso) e o Esquilo (um gaúcho bem calmo). Nos mantínhamos em silêncio, pensativos. Ou sobre nossos destinos ou sobre nosso passado.

Partimos em direção ao que acreditávamos ser a parte mais perigosa do trajeto. Decidimos correr por lugares cobertos para evitar outro tiro, enquanto o Águia (um goiano implicante) mantinha a retaguarda com seu rifle. A Alerte carregava um clima hostil e pesado depois da morte de Gavião. Ao passarmos pelo primeiro trecho, conseguimos nos esconder para dar suporte ao companheiro que havia ficado pra trás. Mas, assim que paramos, percebemos que Águia havia disparado duas vezes na direção de Calango, que havia ficado assustado olhando pra trás. Assim que o baiano se abaixou pronto para xingar o goiano, o corpo de um rebelde tombou por cima do caixote de madeira que Calango usava como escudo. Respiramos fundo.

Atravessamos a Alerte e chegamos na altura da Titus, onde o clima parecia mais tranqüilo para chegarmos ao hotel. Seguimos os cinco caminhando quando fomos abordados novamente, desta vez por um grupo de quatro rebeldes armados. A troca de tiros foi intensa até que os quatro nativos já estavam mortos e duas balas alojadas na minha coxa, além de um ferimento superficial no ombro do Águia. Uma dor alucinante tomou conta de toda minha perna, obrigando Calango e Coelho (um carioca quieto) a me carregarem até a Cadet Jeremie. Enquanto eu gritava de dor, Esquilo injetou uma agulha próximo ao ferimento. Não estávamos nem a trezentos metros do destino e da segurança. O céu estava cinzento naquela manhã.

Vi meu pai. Minha mãe. A fazenda. O pão. Os cachorros. Os cavalos. A cachoeira. As garotas. O futebol. A cidade grande. O mar. O quartel. A primeira farda. A primeira arma. O primeiro tiro. O primeiro alvo. O primeira guerra. As nuvens no céu se torciam em desenhos psicodélicos naquele firmamento caribenho sem graça. O cinza havia dado lugar a cores vivas como azul, verde, amarelo e rosa. Desenhos coloridos dançavam na minha frente e davam uma estúpida vontade de sorrir para o nada. Não sentia mais dor. Mesmo transformando minha mente em uma tempestade de pensamentos, não conseguia chegar a nenhuma conclusão sobre absolutamente nada. Pisquei os olhos.

A primeira coisa que vi foi o rosto do Esquilo. Não estávamos mais a céu aberto. As cores tinham sumido. Parecia que havíamos chegado ao hotel, finalmente. Olhei para os lados e lá estavam Calango e Coelho, devorando um prato de comida. Certamente estávamos no hotel. Antes que eu pudesse associar tudo o que havia acontecido, ouvi Esquilo dizer: “Guri, tua perna tá muito mal. Tu vai voltar pra casa”.

Rambo

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